sexta-feira, 29 de junho de 2012

PAPÉIS GUARDADOS


Mudança é sempre bom, apesar de trabalhosa. Ainda que o texto Mude, de autoria polêmica, recomende ou sugira algumas ideias, vale retirar dele algumas leituras sobre o ato de mudar: mudar de rua, a cadeira de lugar, tomar outros ônibus, corrigir postura, comer menos, arrumar trabalho mais digno, mais prazeroso e tantas outras propostas.
Pois bem: mudei-me de casa recentemente. Não sei se segui o poema, mas valeu a pena tê-lo feito. É sempre bom decidir que a felicidade é a chave de entrada da porta da nova casa.
E digo felicidade de mão cheia: um novo canto para cantar novas alegrias, ainda que, por ora, entre caixas e pacotes, mas tudo tomará seu lugar, outras coisas serão mantidas, outras, ainda, serão descartadas.
Foi o que aconteceu ontem ao abrir uma caixa e rever coisas guardadas há algum tempo. As caixas, estas sabem segredos silenciados no escuro e na fita gomada que as vedam. Sim, sabem sim.
É sobre este segredo que me debruço ao falar de folhas rasgadas. Rasguei várias e diversas contas e faturas pagas (que bom que hoje há declaração de quitação). De repente, em meio a coisas de escola, deparei-me com duas folhas distintas, do mesmo ano de 2005, apesar de serem contemporâneas, estavam armazenadas distante uma da outra.
De ímpeto, eliminei a primeira: um telegrama de uma instituição de ensino na qual trabalhei, por meio do qual, seu diretor me convidava a comparecer no local no dia seguinte para tratar de rescisão contratual, já que o órgão não mais precisaria de meus préstimos profissionais. Não sei por que guardei o papel, talvez porque a gente guarde coisas inúteis como comprovação de tantas inutilidades da vida, uma demissão, por exemplo.
Não guardei o papel com raiva, mas com raiva o rasguei por tê-lo guardado entre algumas preciosidades.
E aí entra o segundo texto, ora conservado. Trata-se de um texto intitulado “Você é muito especial”, assinado pela autora, uma ex-aluna da instituição que me dispensou naquele ano. Diferentemente do telegrama, o relato tem sua poesia, sua beleza, sua arquitetura de verdade sobre a pessoa que o produziu.
É um desenho que revela a vida da pessoa, sua história, sua trajetória, suas dificuldades, a perda dos pais, do irmão, enfim, uma história acidentada de alguem que começou a trabalhar aos onze anos e só retornou ao meio acadêmico bastante tempo depois.
E a riqueza de detalhes do texto me fez ver que este deveria ser mantido no lugar onde guardamos coisas das quais não queremos nos separar. Pois bem, a ex-aluna relatava no texto da alegria em ter ingressado no Curso de Pedagogia, em 2005. E como ela estava e se sentia feliz por suas conquistas, em especial por ter chegado à Universidade após uma vida escolar acidentada, e foi na suplência que ela encontrou degraus para isso. O relato trazia um lamento da estudante sobre suas deficiências acadêmicas, dado o terreno acidentado sobre o qual caminhou com dificuldades entre a escola que acolhe e a que é acolhida quando se tem condições para o estudo, mas as perdas não eram vistas como derrotas, pelo contrário, como estímulo a perseguir novos objetivos. Vale recortar do texto o que dizia a moça: (...) “ Enfim iniciam-se as aulas, para mim um mundo novo. Quantos obstáculos encontrei; sentia-me tão diferente de todos que ali estavam; pensei em desistir. Quantas vezes me questionei sobre o que estaria fazendo aqui, pois não sei ler, nem sei escrever. O tempo passou e tudo foi se encaixando: descobrir que tenho capacidade. Portanto, Professor Elísio, conto com sua ajuda; sua garra me enconraja. Sou uma aluna invejosa assumida. Quando algum aluno diz alguma frase que você gosta, em seguida você responde, gente, que bonito, que bom comentário, um dia eu vou ouvir isto de você. Por favor, professor, mantenha este carinho com a classe, hoje não consigo mais me viver sem a faculdade e você faz parte dela. Se você deixar de brilhar, deixarei de crescer”.
Observando o relato nota-se que a emissora disse não saber ler, nem escrever: ledo engano; colocou com maestria seu sentimento mais profundo pelo ato de viver, de recuperar-se, de retomar um tempo perdido momentaneamente. O texto da autora, este sim mereceu outra sorte: não ser rasgado da caixa de coisas – às vezes inúteis - que juntamos ao longo da vida, pois dá exemplo de superação, de esperança, da antítese entre a frieza como uma empresa – nunca uma família como se costuma dizer no vazio dos discursos – trata um ex-funcionário.
A vida é assim: um papel aqui, outro acolá e o seu desenho inacabado se vai rasgando ou guardando. Escolhi guardar o segundo dos textos aqui referido e o homenageio com Fernando Pessoa, nos versos:
"Trago dentro do meu coração,
Como num cofre que se não pode fechar de cheio,
Todos os lugares onde estive,
Todos os portos a que cheguei,
Todas as paisagens que vi através de janelas ou vigias,
Ou de tombadilhos, sonhando,
E tudo isso, que é tanto, é pouco para o que eu quero.

Álvaro de Campos – Fernando Pessoa. 

terça-feira, 5 de junho de 2012

Tributo a Oswaldo


Oswaldo, negro alto, forte, dono de uma voz a estilo Nat King Cole, pessoa com quem tive o prazer de conhecer em outubro de 2011 e conviver com ele por alguns dias. A música para ele soava como que a roupa que vestia ou era sua própria alma.
Minha convivência com Oswaldo foi breve, mas deixou lembranças agradáveis, apesar de ele ter sido meu cuidador por aproximadamente duas semanas, num período pós-operatório. Como foram amenas as horas de dor ou de desconforto compensadas pela prosa mansa e o cantarolar constante de meu acompanhante.
Falamos (ele falou mais) de tantas coisas, de histórias de vida, de música, de bailes, de nostalgia. Não chegamos a conversar sobre baladas (em nossa época não era comum esta prática), mas o assunto música, show, festas embalavam a fala da vida dele, da trajetória como músico, estimulado pelo pai, dono de uma orquestra em tempos idos destas agremiações musicais que traziam emoções às noites de outrora. Disto muito se falou, certamente.
Oswaldo contou-me sobre suas peripécias de músico, em tempos dos ônibus que levavam a alegria em notas musicais às cidades diversas, pequenas, grandes, perto ou longe, cortando o estradão, asfaltado ou não, para criar, ao som da orquestra do pai, a alegria de dançarinos em bailes de formatura, de debutantes, de aniversário da cidade ou outros eventos comemorativos, alguns deles, com a presença dos famosos de sua época.  
Numa destas conversas, de repente, arrisquei perguntar-lhe sobre um empresário musical da época relatada. Oswaldo puxou pela memória e disse: é um neguinho magrinho, de óculos, bom de fala, esperto que só? Confirmei que sim e revelei que o neguinho a quem ele se referira era Moraes, meu finado sogro que, dentre tantas venturas, teceu sua experiência como também empresário musical. A prosa, a partir de então, ficou melhor e mais próxima.
Oswaldo falou-me sobre as canções italianas e sua alegria em interpretá-las, com o italiano arranhado a seu modo de pronunciar e de cantar, por meio de seu “erre” retroflexo, marca do caipira regional. Trouxe-me seu ensaio musical preparado para gravar as canções que pretendia lançar em CD, outro ainda gravado em dupla com uma intérprete, com músicas em inglês, espanhol, italiano, com destaque à canção Amigos para sempre, e outras gravações, marcas de seu talento musical. Assim, os dias compridos encurtavam-se e curvavam-se à voz melodiosa dele.
Avançamos sobre os clipes musicais e Oswaldo mostrou-se mais conhecedor do assunto: passamos pela orquestra de Ray Coniff, por André Rieu, por Românticos de Cuba, somados ao solo de tantos cantores e cantoras nacionais e internacionais, Era boa a companhia dele com o toque musical e as histórias contadas e cantadas a cada canção, orquestra, cantor e afim.
Para tudo, o negrão tinha algo a acrescentar. Como eram boas as tardes musicais naquela companhia. E, assim como chegou, cantando e falando de som, o nosso tempo de convívio terminou com minha recuperação. Despedimo-nos e nunca mais me encontrei com o meu cuidador-cantor daquelas tardes de primavera e dos sons suaves ouvidos juntos do ano de 2011.
A vida é uma questão de tempo e de oportunidades. Para tudo há um tempo debaixo do Sol, diz o Eclesiastes e confirmo-o. Uns dias, por algum tempo desfrutei a companhia de Oswaldo, um amigo feito num momento peculiar. E foi este o nosso tempo. Soube ontem, dia 04 de junho que Oswaldo desligou suas cordas vocálicas, seu som suave, seu riso fácil e sua voz aveludada de King Cole. Foi enterrado no domingo.
Che suona il Silenzio in memoria di velluto della voce dolce della cantante Oswaldo.
Emocionado com o passamento do meu amigo, consigo ainda penar em John Donne e em seu poema Meditações XVII ao dizer que:
Nenhum homem é uma ilha isolada; cada homem é uma partícula do continente, uma parte da Terra; se um torrão é arrastado para o mar, a Europa fica diminuída, como se fosse um promontório, como se o fosse o solar de teus amigos ou o teu próprio; a morte de qualquer homem me diminui, porque sou parte do gênero humano. E por isso não perguntes por quem os sinos dobram; ele dobram por ti.
Caro Oswaldo, sua voz ressoa em mim e os sinos, hoje, dobram por ti.