quinta-feira, 30 de agosto de 2012

De palavras e cinzas



Era quase carnaval. Naquela manhã de quinta-feira não garoava mais na Terra da Garoa. A estação Paraíso do Metrô mais negava que confirmava seu nome de batismo. As pessoas esperavam pelo trem como a última esperança.
De repente, “fui entrado” num dos vagões. Como um troféu, consegui um lugar. A meu lado, sentada, uma senhora vociferava contra o serviço ao qual paga, apesar da idade. Bradava, à busca de se fazer ouvida, pela multidão que, agarrada ao que podia, parecia alheia às queixas de quem se dizia “louca, maluca”, pelos anos que lhe arcavam o corpo cansado, todavia uma alma em luta.
Ia para as Clínicas. Segunda razão de seu desconforto: soube de véspera, que o exame da neta, há tempo marcado, fora cancelado. A procurar saber o porquê do cancelamento, esbravejou que a “mocoronga” que viera atendê-la no balcão informou sobre os novos procedimentos para exames especiais.
De olho vivo nos passageiros do trem-sardinha, a idosa cidadã disse que “faria o diabo” naquele Hospital e, se preciso, enfrentaria Diretores, mas que o exame – “que não é de graça como pensa o povão” – seria feito e como seria!
Seria sim, porque, segundo ela, os políticos não sabem o que é fila, vila, favela, senha, fome e desesperança. A cada necessidade, um assessor, um ajudante, sempre pronto a lhes fazer as vontades, a preços custeados pelos pobres.
Não resisti à curiosidade e quis saber o nome da guerreira do trem. O trem parou nas Clínicas, Alcineide apeou. O vagão a ouviu, entretanto, ninguém se moveu, ninguém a acompanhou, ninguém empunhou sua bandeira. As dores e lamentações da pobre mulher parecem ter saído do trem quando ela desceu na estão Clínicas. Sua dor, certamente não sairá no jornal. Penso que nunca mais verei Alcineide. Temo uma coisa: que suas palavras sejam como as cinzas dessa quarta-feira.


São Paulo, fevereiro de 2008.
Texto originalmente publicado no Jornal Bom Dia.

Classe de Marina


As coisas, de fato, mudam. “Só o que está morto não muda”, é verso de Edson Marques, pleno de razão.
Há anos já quase esquecidos, na pequena Mirandópolis, havia um grupo escolar e nele,  uma classe meio que separada do conjunto da unidade: a da professora Marina.  Engraçado que a gente não sabia nada sobre a classe. Uma coisa era certa: as crianças não separadas morriam de medo de frequentar aquela turma. Os pais eram os primeiros a aterrorizar os filhos contra a temível classe: estudar muito, não repetir o ano. Nada em razão da professora – aliás, pessoa muito doce em minhas lembranças - mas pelo labor que ali se construía e que se percebeu com o tempo: uma classe especial.
O tempo que flui traz mudanças.... ainda que sofridas, suadas, doídas, mas até faz mudar.
É tempo de inclusão: desafio provocador da melhoria da qualidade da educação escolar, como direito à educação em sua plenitude e desmistificar a riqueza da diversidade. A transformação da escola – ao entender que a trajetória estudantil não é um rio perigoso,  ameaçador - terá a inclusão como consequüência, mesmo que ainda se desafine a canção.
É impossível conter a correnteza do rio ante a força de quem deseja represar seu curso, e já se pode declarar sobre o direito à igualdade quando a diferença inferioriza ou quando a igualdade descaracteriza os seres humanos.
Portanto, ao tomar todas as crianças e adolescentes, sem discriminação, como titulares de direito à educação, reconhecer e valorizar a diferença, certos das dificuldades, não deverá haver temor em estudar e mudar: seja com Marina, Cida, Ariane, Eliane, Sirlei e outras professoras.


Artigo originalmente publicado no Jornal Bom Dia, em 2009.

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Presente especail


Minha filha nasceu em agosto de 1976 à época das Olimpíadas de Montreal. O sucesso de então na Ginástica Artística era a romena Nádia Comaneci, vitoriosa em suas acrobacias, responsável pela alegria de muitos apreciadores do esporte. A ginasta tinha um hábito que particularmente me chamou a atenção: colecionava bonecas. Eram mais de duzentas, àquela época.
Engraçado como os pais, em seus devaneios, sonham no lugar de seus filhos. Talvez devesse perguntar-lhes se é possível fazer isso. Não sei, mas nem sempre eles podem responder por isso, especialmente quando são bebês. Por uma época, imaginei que minha filha, a exemplo de Comaneci, fosse desenvolver o mesmo hábito a colecionar, conservando suas muitas bonecas ganhadas.
Não o fez: brincou muito com elas, pintou-as, maquiou-as, destruiu – pela liberdade e direito de brincar, quase todas suas bonecas. Conservou, a seu modo, uma da qual gostava muito: Amelinha (hoje seria a boneca empreguete e, talvez, voltaria com sucesso total; nem sei porque a Estrela não pensou nisso ainda, pode ser o anúncio de uma venda como água).
Mas, falando em sonho, gosto das frases de minha mulher, apreciadora dos sonhos e do direito que se tem em fazê-los, construí-los, projetá-los em devaneios da vida em suas múltiplas possibilidades. Como ela sonha, projeta, arquiteta suas cosas tão pessoais e especiais. Até admito que ela esteja certa.  Sonhos.
Hoje, seis de agosto de 2012, em épocas iguais de Olimpíadas, Arthur Zanetti, coincidentemente, fez a alegria do Brasil com a segunda medalha de ouro do país, na ginástica artística e é o dia em que se celebra o aniversário de Liza Mirella, minha filha. O sonho de Zanetti se concretizou: é possível afirmar que ele tivera sonhado muito por tal conquista.
No dia em que comemoravam os meus sessenta anos, em 2012, recebi um grande presente de minha filha e de meu genro: a anunciação de que um bebê estava vindo ao mundo e o tomei como presente de aniversário – presente único, especial, o melhor deles já recebido, ora embalado e a ser embalado pela vida que se transcorre quando o nenê se apresentar entre nós, neste mundão de meu Deus.  Ainda não havia conseguido juntar as palavras para brindar meu presente (todos os outros perderam a graça após a anunciação, ainda que queridos e bem recebidos). Ensaiei escrever uma crônica, um artigo, uma reflexão: nada me brotava; fiquei a imaginar as benesses da vida.
O dia de hoje quase está por acabar. È o aniversário da mãe de meu futuro neto ou neta. Ansiei escrever algo. E está sendo construído reflexivamente, em forma de prosa, a homenagem ora expressa, como carinho, como texto-presente que se publica, posto que não foi escrito em vão.
Mexendo em meus guardados eletrônicos, encontrei uma charge recebida por Liza Mirella por seu amigo Pelicano, num de seus aniversários, quando ambos militavam juntos para distribuir as boas e as novas pelas linhas do Bom Dia Rio Preto. Linda homenagem, da qual me sirvo para ilustrar este registro.
O dia dos pais se aproxima novamente. É bom o exercício, apesar de nossas falhas, nossos equívocos, nossas ansiedades. Como tudo na vida é exercício que se aprende e que se pode ensinar.
Encontrei uma oração pelos filhos em uma das redes sociais. Uma bela súplica. Deixo aqui dois versos que me fizeram pensar mais profundamente sobre o valor dos filhos, quando se é pai e se treina (se é que é preciso), ser avô. Meu Senhor, quero te louvar e agradecer pela vida dos meus filhos. (...) Que eu possa ser para eles, o pai/mãe amoroso (a), sincero(a) e amigo(a) que precisarem em qualquer fase de suas vidas.
Com um pouco de Saramago fecho esta homenagem: filho é um ser que nos emprestaram para um curso intensivo de como amar alguém além de nós mesmos, de como mudar nossos piores defeitos para darmos os melhores exemplos de aprendermos a ter coragem.
Que a nova geração de minha família cresça neste ato: coragem.
Rio Preto, 06 de agosto de 2012.