domingo, 19 de janeiro de 2014

Ana Clara, a princesa do Maranhão

Era uma vez, numa terra muito distante daqui, num reino de Reis e Rainhas de uma dinastia de muitas décadas, uma menina que queria ser princesa, mesmo que em sonho. Ela nem sabia o que era dinastia, rei, rainha, mandante, comandante, nem o que era riqueza, poderes, quereres. Ela era pobre e seu sonho era ser princesa. Este era o seu maior querer numa infância dura e cruel ao viver naquele reino.
A candidata à princesa era pobre e, dificilmente, esposaria alguém da dinastia para tornar-se herdeira do trono daquela família rica, ilustre, de poderosos políticos do lugar. Talvez ela nem soubesse, ainda, na pouca idade o que era casar-se com o príncipe. Sua vida, apesar de dura e pobre marcava-se pelo desejo de ser feliz em seu bairro mesmo, como princesa, apenas.
É possível que a pobre menina tenha se deparado com sapos, rãs e outros animais que povoam as histórias encantadas, mas nem tenha se dado conta de que tais seres, entre bruxas, príncipes, lagos, fontes, feitiçarias e castelos a aproximassem de sua fantasia infantil. Talvez a menina tenha tido pouco tempo para ouvir ou ver histórias assim fantasiosas, em meio às agruras a que vivia sua realidade.
Mas, no caminho da sonhadora menina havia um castelo muito grande. Talvez a menina nem soubesse da existência do lugar, pode ser que tenha ouvido falar dele rapidamente, mas sem entender como aquilo pudesse ser chamado de castelo. O castelo de Pedrinhas. Seria difícil aos seis anos entender que de pedrinhas em pedrinhas se constroi um castelo poderoso para comandar o lugar de seu reino.
Ana Clara talvez nem tenha sabido ainda que houvesse outro castelo na cidade. O da realeza donde a dinastia dava sentido ou não às coisas do lugar. Ela saberia quando de seu avanço pelos anos do ensino fundamental, com seu ingresso esperançoso no ano de 2014. O ensino de nove anos, que tem por objetivo, dentre outros, o desenvolvimento da capacidade de aprender, tendo como meios básicos o pleno domínio da leitura, da escrita e do cálculo. Certamente, a menina ouviria falar do palácio.
No reino de Pedrinhas moravam os comandantes do lugar. Os ditadores da ordem contrária ao bem a que Ana Clara e sua família tanto ansiavam. Mas, em terra de rei, rainhas, algozes, tiranos, oligarquias, enfim, de gente do povo, era possível ir vivendo como Deus queria, entre sonhos e desejos, ainda que fantásticos, como o sonho da menina.
Pois bem. Andar de ônibus, no reino da pequena princesa era bem diferente do andar de carruagem pela Bela Adormecida ou pelas limusines e por meio de outros veículos oficias que transportam as rainhas, as princesas, as duquesas e as marquesas das monarquias do mundo moderno. Andar de ônibus pode ser um risco, de repente.
Lembro-me do sofrimento das personagens infantis das histórias encantadas. Todas elas correram riscos. A pequena vendedora de fósforos e o frio que a cercava naquelas ruas de seu reino. Conta a história que fazia um frio terrível; caía a neve e estava quase escuro; a noite descia: a última noite do ano. Em meio ao frio e à escuridão, a pobre menininha, de pés no chão e cabeça descoberta, caminhava pelas ruas. Era o seu risco para vender os fósforos.
Já, Cinderela, era filha de um comerciante rico. Com a morte do pai, sua madrasta tomou conta da casa da herdeira e passou a viver com sua madrasta malvada, junto de suas duas filhas que tinham inveja da beleza de Cinderela e transformaram-na em uma serviçal. Era o risco da moça rica, órfã.  Seu refúgio era o quarto no sótão da sua própria casa e seus únicos amigos: os animais da floresta.
Já, na história brasileira, a versão de Gata Borralheira, recolhida por Câmara Cascudo, da tradição oral do Rio Grande do Norte, pode-se conhecer os riscos enfrentados por Bicho de Palha, o apelido dado a Maria pelos criados com quem ela trabalhava no palácio de um príncipe elegante e muito bonito. Ninguém sabia quem ela era realmente e de onde viera e por que saíra de sua casa. Chamavam-na assim, porque ela vivia coberta por uma capa de palha trançada, que lhe deixava à mostra somente os olhos. No palácio real, ela limpava os aposentos e os banheiros dos criados. A jovem vivia calada, pouco conversava com as pessoas com quem convivia. Mas amava, a distância, o príncipe. E, como era trabalhadeira e não se importava com a vida alheia, deixavam-na ficar assim, anônima.
Riscos. Todas as meninas e princesas das histórias relembradas correram riscos. Ana Clara, a quase princesa do Maranhão teve sua história encurtada aos seis anos, no dia seis de janeiro. Aos seis anos, a pequena sonhadora entraria para a estatística do acesso de crianças ao ensino obrigatório no Brasil, em sua cidade, seu reino. Não entrou.
Entrou para outra estatística. A do risco a que correu, em 04 de janeiro, queimada junto com a irmã e a mãe, durante ataques criminosos a quatro ônibus, na capital de seu reino, ordenado pelo Palácio de Pedrinhas, conhecido mundialmente por Complexo Penitenciário de Pedrinhas. A meninazinha levava seus sonhos com a pequena família em um ônibus, na Vila Sarney, dentre os que foram atacados por criminosos do lugar.  
A princesinha morreu na primeira segunda-feira de um ano que, talvez, junto da família, se tivesse desejado que fosse feliz. Como felicidade é algo sem tempo, sem lugar, é possível que os cinco dias e mais o quase sexto tenha sido de sonhos de alegria para quem está na infância e sonha com o mundo encantando, até que, no início da noite, o decreto assinado por mandantes do reino de Pedrinhas tenha dado fim ao sonho de uma das muitas Clarinhas órfãs de alegria, de esperança e de felicidade em seu viver em reinos de comandantes e comandantes.
O reino vai bem. O reino continua bem. A vida de muitos moradores do lugar, nem tanto. Mas é preciso, no entanto, que os direitos fundamentais da pobre mãe e da irmã da menina, sobreviventes e das demais vítimas daquela tragédia, não sejam esquecidos em meios a papeis e as estatísticas dos que, sem esperança e sem sonhos, estejam marcados para morrer.


São José do Rio Preto, 19 de janeiro de 2014.