terça-feira, 26 de julho de 2016

A força do amor

Empresto, com certa ousadia, o título da canção de Cleberson Horsth e Ronaldo Bastos, interpretada pela Banda Roupa Nova. Em toda a composição os autores sugerem a naturalidade como o amor se move e dizem: “abriu minha visão o jeito que o amor, tocando o pé no chão, alcança as estrelas. Tem poder de mover as montanhas, quando quer acontecer, derruba as barreiras”.
De fato. No último domingo, dia 21 de novembro, percebi o fantástico poder e o mágico movimento de montanha, num pequeno gesto. A cena por si pode se nominar como as razões do amor.  Muito embora, de acordo com os místicos e os apaixonados, o amor não tem razão alguma. Silésius, místico medieval, dizia que o amor pode ser comparado à rosa, já que ela não tem porquês: floresce porque floresce.
Então, era domingo, final de primavera, aragem quente na paisagem do interior paulista, estava num hospital, acompanhando meu sogro em sua luta pela vida. Dura batalha travada por ele ressalte-se.
Ele, ali com suas dores e temores, parecia não se importar se era domingo, nem com a temperatura, nem mesmo se havia uma partida de futebol, uma de suas diversões prediletas, ocasião em que, como corintiano da cor da paixão, o arrebatasse para a televisão, como forma até de minimizar as agruras do tratamento.
O mar não estava para peixes, nem o dia para futebol. A magia da TV não fora o bastante para aliviar dores insistentes.
Quase no final da tarde, o jogo acabando, com a vitória do time de Parque São Jorge, ou do Pacaembu ou quiçá do Itaquerão, o amor, esse sentimento dimensional, deu as caras e fez confirmar mais um dos versos da canção que se emprestou para essa reflexão: “não tem hora de chegar” e entrou de mansinho, alegrando o ambiente. Minha mulher, palmeirense confessa, muito simpática ao Santos Futebol Clube, trouxe, sem hora certa de chegar, uma demonstração de amor que se dá graciosamente, como sentimento que se semeia ao vento, para muito mais daquilo que, porventura, esteja fixado nos livros, nos poemas, ou em regulamentos. Ama-se e pronto; ama-se, porque se ama.
Ela buscou sua inspiração nas portas dos apartamentos que ostentavam que mais uma Natália, ou Pedro, ou Eduardo, ou mesmo Giovana tivesse vindo ao mundo. À porta de seus quartos, a vida se estendia resumida num par de sapatinhos, num instrumento musical, numa minúscula camisa ou outra forma de expressão de que o amor ali frutificara.
Não deu outra: para homenagear o pai, fazer dele o seu motivo e movimento de amar, passou parte de sua tarde, em casa, a preparar os adornos a um par de chinelos do tipo havaianas, ganhado pelo pai, atá-los bem entre fitas alvinegras, para enfeitar a entrada do apartamento.
O amor se deu, movimentou-se, ergueu os pés e tocou as estrelas, em forma de gol, em forma de time, de paixão, ali se metaforizou e ganhou a simpatia de enfermeiros e transeuntes taciturnos que, muitas vezes, fazem dos corredores de hospitais, seus espaços para breves caminhadas.
A vitória pretendida pelo timão foi barrada naquele domingo pelo Vitória, mas o amor filial se fez forte e lá ficou dependurado, expressão máxima de inspiração e de admiração. Sou obrigado a vergar-me a Silésius: o amor, tal qual a rosa, floresce porque acontece.



São José do Rio Preto, 24 de novembro de 2011.

Dia de avô

Todo dia é dia: de índio, de trabalho, de jogo, de levantar, de dormir, de passear. Todo dia, também é dia de avô.
Um desses dias dos dias, eis que saí para acompanhar a vovó Su a um exame. Final de tarde. O exame seria demorado – o médico ainda nem havia chegado e já era a hora de o exame acontecer – “todo dia é dia de aguardar, também”. Vovó Su sugeriu que eu pudesse esperar ou ir a algum lugar e retornar.
Entre a ida e a vinda, fui parar num dos Sebos da cidade à procura de livros. Entretive-me com as obras da livraria, escolhi algumas delas e retornei para a clínica onde vovó Su ainda esperava pelo médico e pelo exame.
Antes disso, porém, girando pela região onde o Sebo foi parar após a mudança de seu endereço, uma placa de escola infantil chamou-me a atenção. Descendo, devagar a rua, dado o trânsito que marca a saída das escolas em seus turnos, pelo retrovisor vi um carro preto, conhecido, estacionado, com o seu dono parado ao lado.  
Adiante, parei o meu carro, e dirigi-me ao lugar onde estavam o carro e o seu condutor, meu genro Paulinho, que fora buscar o filho no final da jornada escolar do dia. E a criatura feliz estava dentro do carro em seu banco.
Que encontro! Que dia de avô tive naquela tarde fria de junho. Meu neto Theo deu-me um desses presentes que criança costuma dar e, de repente, quebrar as certezas, as rudezas, as idiossincrasias de gente grande: o afeto de neto, sem preço, sem custo, sem limites.
Tirei o menino de seu banco, que, a meu colo, olhava-me com um amor tão profundo e conversava muito tentando – a seu modo expressar a sua felicidade, ou seria a minha felicidade – agora não sei mais dizer: era tanta a felicidade ali, em frente à escola do garoto.
A primeira pergunta que ele me fez: - vovô, por que você não está em sua casa?
Fiquei pensando em como responder à lógica do questionamento do menino, que me permitiu uma leitura breve (o que meu avô está fazendo em frente da minha escola, se aqui não é o lugar dele?). Pois bem, disse que estava de passagem e que iria ... - (sem que ele me desse tempo e emendou com a pergunta:  – onde está a vovó Su?
Após as perguntas iniciais, começara o festival da mais profunda alegria. O menino, em êxtase pelo fato inusitado de o avô estar em sua escola, chamou-me para ver a placa com o nome da escola, aliás as duas placas de identificação do lugar. E, aos poucos os pais dos seus colegas de turma iam chegando para apanhar os pequenos e ele, deslumbrado me apresentava aos amigos: é meu vô, seu nome é Elísio, ele está aqui, olha, olha!
Entre abraços, apertos, risos de contentamento daquela tarde festiva para nós dois,  vi passar o Felipe, o Augusto, a quem tive de segurar num braço (o outro era do Theo) para dividir o amor de avô por instantes. E vi a Luísa e vi outras crianças e vi também os pais deles. 
Discreto, silencioso, emocionado, o pai do menino, Paulinho, meu genro, tenho certeza, registrou aquilo tudo em seu coração emotivo. Vibramos, sem trocar uma palavra sequer naquela cena.
A palavra àquela hora não era de gente grande. Era o momento neto. Era a hora do menino. Era a hora do presente. Era o dia de avô, destes que acontecem. Naturalmente, cotidianamente, ou por um traçado da coincidência que, de repente, faz da rua da escola a passarela para a expressão amorosa de viver.

Obrigado, meu querido neto Theo por fazer, também, de um final de dia frio de junho, em 2016, um dia de avô. Com amor imenso, vovoLísio. Rio Preto, 26 de julho de 2016.  

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

ESCOLAS & ENREDOS

Cavaquinhos, baterias e vozes formaram o som que invadiu o ar nos últimos dias, nas grandes cidades do país. As imagens indescritíveis, as comissões de frente, os carros abre alas encenaram o grande show das agremiações carnavalescas, ao som de sambas-enredo.
          As escolas de samba ensinam sobre gestão: do carnavalesco à idéia do coletivo. Um processo de construção de ano inteiro, para levar à avenida o enredo que enreda a vida.
         Finda a apresentação, a partir da dispersão, com o olho no resultado do campeonato, a escola se debruça a seu novo ano: pinçar novas idéias.
O que diferencia escolas de samba e instituições escolares? São comunidades organizadas em torno de um papel a cumprir, têm dirigentes, coordenadores, mestres, aprendizes, quadras e projetos para enredar a vida. Ambas são avaliadas externamente em diferentes quesitos.
         As primeiras – endinheiradas, chamativas, veneradas pelas comunidades – vestem-se de plumas e brilho. As outras, arrecadando recursos ora aqui, ora ali, e, na tentativa de embalar, de fascinar suas comunidades, podem despertar mentes à luminosidade, enfim, enredar. Nelas, o enredo mais longo, o desfile feito de duzentos dias, nem sempre arrastam multidões para acompanhar o cortejo que se espera. Uma pena (bem distinta das que adornam as fantasias).
          Da paixão das escolas de samba, fica a revisão do pensamento de Touraine: a escola precisa tornar-se “escola do sujeito”.

Publicado originalmente no jornal “Bom Dia São José do Rio Preto”, em 23/02/2007.

quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

E O MENINO FEZ UM ANO, EM 2014

Aprendi com o terapeuta Oswaldo Longo Jr que as comemorações de aniversários podem durar até que se comemore o próximo. Pois bem. Acreditei e tomei a sério a conversa travada no confessionário das relações de vida. Há mesmo muita coisa a contar de um a outro fato, caro Oswaldo.
Em 25 de fevereiro de 2013 escrevi uma carta inicial ao menino Theo, meu neto querido. O dia de seu nascimento. Um final de dia de tumultuosa alegria. O tempo para quem se alegra ao longo das novidades, ainda que aparentemente duradouro, passou logo. Em 2014, singelamente, na intimidade familiar, cantamos os primeiros parabéns a você, com a participação do pequeno causador de tamanha felicidade em família.
O garoto, àquela época, já andava, balbuciava algumas palavras e distribuía sua energia a seus avós, seus pais e a seus tios. Vestia-se numa bata branca que o deixava ainda mais iluminado, e encantado com a singela decoração do painel dos bichos – leões, macacos, tigres, girafas – um de seus interesses – marca de sua primeira festa entre parentes mais próximos.
O ano novo de 2014 também se teceu rápido. Talvez o crescimento do menino impedisse a paixão de ver a razão com que o tempo imprime sua velocidade e seu ritmo. E o menino danou a falar, a surpreender a todos com sua esperteza, ligeireza, gostos, caras, bocas, risos frente ao mundo a descobrir.
Ouvir-lhe a voz, ver os dentes nascerem, acompanhar seu desenvolvimento é comparável à redescoberta da vida. A escola infantil, quanta contribuição teve na vida do pequeno grande garoto. Ritmado, já me fez descrever a balada à beira do berço, publicada no blog em dezembro de 2013, Theo não resiste a um bom som. Canta, dança, salta, pula, e dedilha sua guitarra com ares de grande tocador.
Toda esta evolução do garoto constitui-se presentes antes e depois do primeiro aniversário, verdadeiros presentes a nós: pais, avós, tios, tias e amigos. A cabeça registra as emoções e estas se misturam ao calendário cronológico de uma vida tocada pela alegria de ter o menino à volta.
Por exemplo, ouvi-lo, numa viagem da família, em setembro ido de 2014, chamar-me e também a sua avó Su por vovozinho e vovozinha, é som de singularidade particular. Um carinho grande de gente enorme. Sem preço.
O mundo particular do menino neto, entre nós, se desenha ao brincar, interagindo com as pessoas e entre seus bichos – cavalos, porcos, carneiros, patos, boi – todos devidamente nomeados, seus dinossauros, seus carrinhos, e ainda, a apropriação dos velhos homenzinhos da marca Playmobil, guardados há mais de trinta anos pelo tio-padrinho Guilherme, é uma dádiva ver, participar, e sentir a vida acontecendo.
A aproximação do segundo Natal de Theo trouxe o encantamento das cores da árvore com suas bolas, luzes e o Papai Noel. É de fazer crer a quem tenha perdido o sentimento de magia perante a data que basta observar os olhos da criança em períodos assim. A inocência e encantamento curvando-se ao admirar as luzes diante do mistério da chegada o velho Noel. Mais lindo do que isso: ver o menino colocar seus bichos de pelúcia para esperarem juntos pelo bom velhinho. Coisas da mágica infância.
Ouvir – e curtir – as conversas de Theo é uma aventura surpreendente. E como fala o bichin, como diria meu saudoso avô Marcelino. E o aprendizado da linguagem, com o desenvolvimento das funções superiores defendidas por Vygotsky são bem acentuadas ao observar-lhe o comportamento tagarela frente aos símbolos. Ele ouve as avós, em particular a vovó Su, a mãe e – certamente outras pessoas a pronunciarem: - coitadinho disto, coitadinho daquilo e, muitas vezes escuta também a palavra “judieira”, a qual dela se serve em situações específicas.
Recentemente o pequeno neto veio ficar um bom tempo de sábado a domingo, quando os pais tiveram um evento. Pronto: a casa é toda dele, a rotina se volta toda a embalar o garoto. A avó Su que o diga. Pois bem, numa das escapadas da vigilante do neto para um banho rápido, o menino ficou com o avô. E pediu um biscoito da galinha pintadinha (o que não fazem para vender?) e eu disse a ele que pegasse o pacote, o qual ele bem sabia onde estava. E, sob recomendações de cuidado com os degraus da casa, lá foi o menino pegar o pacote.
Com o pequeno pacote na mão – embalagem que encanta também a criança – ele voltava ao outro espaço da sala onde estávamos, embevecido com a imagem da galinha, descuidou-se de subir o degrau com o qual trombou. Resposta imediata um choro de tirar a avó do banho, com todo o exagero da fala. Socorri-o depressa e, no breve choro ele disse:
− Coitadinho do Theo!
Não sabia o que fazer. O meu contentamento pela expressão do neto foi tão grande quanto o sentimento de vê-lo chorando, e apiedando-se diante da leve queda. Tudo foi dissipado brevemente.  O choro deu lugar à alegria do menino em seguida.
Próximo de casa tem algumas atrações de agrado de Theo: a praça, as calçadas, a cachorrada das casas, os gatos que se espalham e se ajuntam em algumas residências, dentre eles, os que moram nos bueiros, por ele chamado de “bulaco”. Há também uma loja próxima a uma avenida, cujo animal da marca é o leão.
Ao ver a loja, os olhos do menino não são certamente às vitrines, mas às paredes ao alto, em que, numa delas, na esquina há a figura de um grande leão, noutra, fechando a esquina, outros três. Ele se encanta com a grandeza das imagens e ao vê-las diz: - um leão, três leões. E junto disto tudo vem a canção: leão, leão, leão, és o rei da criação. Como o velho coração sexagenário se comporta diante disto tudo? Fantasticamente maravilhoso.
Nestes passeios nossos, é comum que o rapaz prefira andar, a fim de poder correr em disparada pelas calçadas. Sempre para e explora o que vê. Formigas, plantas, pedaços de madeira, papel, e tantas outras coisas, como ele afirma: - quanta coisa! Ao correr, tenho de fazê-lo também, para a alegria dele. A ação conjunta o diverte e corre dizendo: − o Theo e o vovolisio, todo mundo correndo. Pode isto tudo?
 Uma aventura iniciada há algum tempo (como se o rapaz tivesse anos.... mas a gente não sabe valorar o tempo de amor quando se envolve com o neto) é o que ele chama “passear de varinha”. Um dos vizinhos tem na calçada uma cheflera (schefllera arborífica). As folhas da árvore são presas a uma haste de 30 a 40 centímetros. Ela sugere uma vara como se fora uma bengala. O garoto curte demais andar apoiando-se a ela, com a qual faz suas danuras ao longo do programa. E eu tenho de também utilizar a minha, por ordem do moço: duas varinhas: a do Theo e a do vovolisio.
Outro dia cismou que a base donde saem as folhas fosse um bico de um pato. E demorou investigando aquilo tudo. Sempre voltamos a casa com as varinhas, objeto de passeios divertidos.
Há muito para contar em quase vinte e três meses. O bom tempo da infância passa depressa e é sabido que este período não volta mais. Na mente, no coração de quem tem a criança por perto se cimentam as alegrias, as observações, as emoções, os abraços dados diante de cada atitude dos seres singulares de cada criança.
Amalgamando meu olhar a toda a obra que se constroi ao ver a vida acontecer com o pequeno Theo rendo-lhe a homenagem pelo presente que nos dá ao ter feito o seu primeiro ano, antes que chegue fevereiro, vinte e cinco, dois mil e quinze e esta história carimbe o ano dois deste menino que tanta alegria me/nos dá. Vida longa ao querido neto.

Com um abração de seu vovolisio. 

segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

Carvalho vitorioso

Um verdadeiro Carvalho nasceu no Oeste baiano, no ano de 1933. A data, a considerar o registro civil – se feito a bom tempo – guarda o mês de julho, no entanto, o vicejar do broto a terra foi em maio, vinte e cinco.
Os ventos dos bons ares trouxeram para terras paulistas o pequeno Carvalho, que acabou por fincar raízes em sua terra querida: as terras de Manoel também baiano, Alves de Athaíde, o povoado de São João da Saudade, à qual chegara com outros legítimos representantes da boa família, no final dos anos trinta.
O Carvalho se desenvolveu. Cresceu, formou-se. Para conhecer um pouco mais das letras e das palavras, a árvore rompia caminhos diários em busca da alegria do saber, da propriedade rural a que residiu por anos, com distância considerável do povoado, a considerar que a distância se rasgava por caminhada de horas a pé.
Era a força do Carvalho a nutrir sua esperança. E assim se fez a história, até que a singularidade da vida espiritual tomou conta da jovem árvore, aos doze anos. Durante quase 70 anos a árvore nutria-se dos saberes e dos sabores de que a alma necessita. E deixou-se envolver pela esperança de vida eterna, com a singeleza pedida pela vida cristã. Assentou-se à mesa do Senhor por anos; harmonizou-se ao espírito da paz, da caminhada, da certeza de um novo alvorecer.
E o Carvalho forte, árvore utilizada pelos botânicos e geólogos como medidor de catástrofes naturais do ambiente, no sentido de descobrir o índice de temporais e tempestades duma floresta olham e observam a espécie, por ser aquela que mais absorve as conseqüências dos fenômenos.  À medida que os enfrenta mais forte fica a árvore.
As raízes da espécie aprofundam-se mais na terra, seu caule se robustece, e, como tal, blinda-se contra as adversidades, contra temporais e vendavais. Frente a eles, o Carvalho demonstra mesmo numa aparência disforme, a ponto de sugerir um aspecto de tristeza à força descomunal que a toma. E de vendaval a tempestade, a espécie fortalecida cumpre seu papel na natureza.
E o tempo dos frutos lhe chega. Carvalho constituiu sua família. Criou-a, educou-a, ensinou-a que a vida vivida exige coragem, força, fé e foco. A árvore evidenciou a seus cinco carvalhinhos de sangue que a tempestade arranca árvores, mas que Carvalhos permanecem de pé. Para isto, é preciso estudar, E ela amava as letras, os escritos e as escrituras com paixão tal e dos quais nunca se separou. Escolheu ensinar que as veredas – longas veredas – se rompem com o conhecimento que liberta. E uma vez disse: - sei que não conheço tudo, mas sei de tantas coisas. Isto sem nunca ter lido Guimarães Rosa ou Paulo Freire.
E sua prole se realizou. Fez cumprir o ensinamento da boa senhora Carvalho que Faria se tornou, com grande orgulho. E deu ao mundo Ely, Jessé, Jenner, Eliane, meus amados irmãos, cada qual com sua família, para o orgulho maior de Otília, a árvore-mãe querida. A mãe-Carvalho de Faria – que tanta vida, sombra, flores e frutos produzira – quedou-se na manhã de catorze de janeiro de dois mil e quinze. Deixou-nos na travessia com os olhos opacos de dor, mas com o coração – ainda que quebrantado – saudosos e esperançosos de amor.
A boa árvore de mais de oitenta anos, dava sinais de que a vida vinha se esvaindo lentamente ao longo dos dois últimos anos. Não obstante a isso, continuava a tecer esperança no mais verde de seus tons foliares.
O tempo todo que antecedeu sua partida manteve-se altiva, otimista, afetuosa, e, acima de tudo, passava a forte imagem de seu bom humor, sua comunicação e inventividade; insistia em oferecer sombra boa a quem lhe procurasse refrigério.
A mãe-árvore combateu o bom combate. Venceu a morte, deitou-se nos braços do Pai Celestial, a quem professou o amor incondicional. Em seu funeral, a palavra mais expressiva, plena de consolação sobre a terra jurada a Abraão, a Isaque e Jacó, que a fez ver os olhos de Moisés, terra esta a ser, um dia, também adornada com a digna honra do Carvalho vitorioso.

Elísio Vieira de Faria. São José do Rio Preto, triste verão de 2015.

domingo, 19 de janeiro de 2014

Ana Clara, a princesa do Maranhão

Era uma vez, numa terra muito distante daqui, num reino de Reis e Rainhas de uma dinastia de muitas décadas, uma menina que queria ser princesa, mesmo que em sonho. Ela nem sabia o que era dinastia, rei, rainha, mandante, comandante, nem o que era riqueza, poderes, quereres. Ela era pobre e seu sonho era ser princesa. Este era o seu maior querer numa infância dura e cruel ao viver naquele reino.
A candidata à princesa era pobre e, dificilmente, esposaria alguém da dinastia para tornar-se herdeira do trono daquela família rica, ilustre, de poderosos políticos do lugar. Talvez ela nem soubesse, ainda, na pouca idade o que era casar-se com o príncipe. Sua vida, apesar de dura e pobre marcava-se pelo desejo de ser feliz em seu bairro mesmo, como princesa, apenas.
É possível que a pobre menina tenha se deparado com sapos, rãs e outros animais que povoam as histórias encantadas, mas nem tenha se dado conta de que tais seres, entre bruxas, príncipes, lagos, fontes, feitiçarias e castelos a aproximassem de sua fantasia infantil. Talvez a menina tenha tido pouco tempo para ouvir ou ver histórias assim fantasiosas, em meio às agruras a que vivia sua realidade.
Mas, no caminho da sonhadora menina havia um castelo muito grande. Talvez a menina nem soubesse da existência do lugar, pode ser que tenha ouvido falar dele rapidamente, mas sem entender como aquilo pudesse ser chamado de castelo. O castelo de Pedrinhas. Seria difícil aos seis anos entender que de pedrinhas em pedrinhas se constroi um castelo poderoso para comandar o lugar de seu reino.
Ana Clara talvez nem tenha sabido ainda que houvesse outro castelo na cidade. O da realeza donde a dinastia dava sentido ou não às coisas do lugar. Ela saberia quando de seu avanço pelos anos do ensino fundamental, com seu ingresso esperançoso no ano de 2014. O ensino de nove anos, que tem por objetivo, dentre outros, o desenvolvimento da capacidade de aprender, tendo como meios básicos o pleno domínio da leitura, da escrita e do cálculo. Certamente, a menina ouviria falar do palácio.
No reino de Pedrinhas moravam os comandantes do lugar. Os ditadores da ordem contrária ao bem a que Ana Clara e sua família tanto ansiavam. Mas, em terra de rei, rainhas, algozes, tiranos, oligarquias, enfim, de gente do povo, era possível ir vivendo como Deus queria, entre sonhos e desejos, ainda que fantásticos, como o sonho da menina.
Pois bem. Andar de ônibus, no reino da pequena princesa era bem diferente do andar de carruagem pela Bela Adormecida ou pelas limusines e por meio de outros veículos oficias que transportam as rainhas, as princesas, as duquesas e as marquesas das monarquias do mundo moderno. Andar de ônibus pode ser um risco, de repente.
Lembro-me do sofrimento das personagens infantis das histórias encantadas. Todas elas correram riscos. A pequena vendedora de fósforos e o frio que a cercava naquelas ruas de seu reino. Conta a história que fazia um frio terrível; caía a neve e estava quase escuro; a noite descia: a última noite do ano. Em meio ao frio e à escuridão, a pobre menininha, de pés no chão e cabeça descoberta, caminhava pelas ruas. Era o seu risco para vender os fósforos.
Já, Cinderela, era filha de um comerciante rico. Com a morte do pai, sua madrasta tomou conta da casa da herdeira e passou a viver com sua madrasta malvada, junto de suas duas filhas que tinham inveja da beleza de Cinderela e transformaram-na em uma serviçal. Era o risco da moça rica, órfã.  Seu refúgio era o quarto no sótão da sua própria casa e seus únicos amigos: os animais da floresta.
Já, na história brasileira, a versão de Gata Borralheira, recolhida por Câmara Cascudo, da tradição oral do Rio Grande do Norte, pode-se conhecer os riscos enfrentados por Bicho de Palha, o apelido dado a Maria pelos criados com quem ela trabalhava no palácio de um príncipe elegante e muito bonito. Ninguém sabia quem ela era realmente e de onde viera e por que saíra de sua casa. Chamavam-na assim, porque ela vivia coberta por uma capa de palha trançada, que lhe deixava à mostra somente os olhos. No palácio real, ela limpava os aposentos e os banheiros dos criados. A jovem vivia calada, pouco conversava com as pessoas com quem convivia. Mas amava, a distância, o príncipe. E, como era trabalhadeira e não se importava com a vida alheia, deixavam-na ficar assim, anônima.
Riscos. Todas as meninas e princesas das histórias relembradas correram riscos. Ana Clara, a quase princesa do Maranhão teve sua história encurtada aos seis anos, no dia seis de janeiro. Aos seis anos, a pequena sonhadora entraria para a estatística do acesso de crianças ao ensino obrigatório no Brasil, em sua cidade, seu reino. Não entrou.
Entrou para outra estatística. A do risco a que correu, em 04 de janeiro, queimada junto com a irmã e a mãe, durante ataques criminosos a quatro ônibus, na capital de seu reino, ordenado pelo Palácio de Pedrinhas, conhecido mundialmente por Complexo Penitenciário de Pedrinhas. A meninazinha levava seus sonhos com a pequena família em um ônibus, na Vila Sarney, dentre os que foram atacados por criminosos do lugar.  
A princesinha morreu na primeira segunda-feira de um ano que, talvez, junto da família, se tivesse desejado que fosse feliz. Como felicidade é algo sem tempo, sem lugar, é possível que os cinco dias e mais o quase sexto tenha sido de sonhos de alegria para quem está na infância e sonha com o mundo encantando, até que, no início da noite, o decreto assinado por mandantes do reino de Pedrinhas tenha dado fim ao sonho de uma das muitas Clarinhas órfãs de alegria, de esperança e de felicidade em seu viver em reinos de comandantes e comandantes.
O reino vai bem. O reino continua bem. A vida de muitos moradores do lugar, nem tanto. Mas é preciso, no entanto, que os direitos fundamentais da pobre mãe e da irmã da menina, sobreviventes e das demais vítimas daquela tragédia, não sejam esquecidos em meios a papeis e as estatísticas dos que, sem esperança e sem sonhos, estejam marcados para morrer.


São José do Rio Preto, 19 de janeiro de 2014. 

quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

Primeiro Natal do menino Theo

“Deus abalou o mundo com um bebê, e não com uma bomba.”
CHARLES GRANT

2013. Um ano quase como todos os que já se passaram, não fosse pela chegada de um bebê na família, para abalar corações. O pequeno Theo, nascido em 25 de fevereiro, completa, em seu primeiro Natal, dez meses.
Foram meses de diferença na vida de seus pais, de seus avós, de seus tios, de seus bisavós e dos amigos de toda esta gente.
Então, eis que chega o Natal para o menino Theo. Quando ele passa pelo portal de acesso da casa de seus avós maternos, um Papai Noel de barbas encaracoladas, com seu gorro dourado, seus óculos de aros negros, sua pele rosada, recebe o grito de alegria do garoto, a saudar o bom velhinho em sua mais pura inocência da infância.
A nossa casa e a expectativa do Natal se transformam em alegria ímpar. É o primeiro evento a contar com o mais novo integrante da família. Os olhos do guri procuram pela felicidade que a infância consegue captar de maneira natural e o Natal se vai desenhando de uma forma mais precisa, mais pura, mais verdadeira.
De repente, como os padrinhos do menino tinham de viajar para passar o Natal com a família da madrinha, era o momento de entregar o presente ao afilhado. E lá foram os tios-padrinhos a participar do momento solene. Os olhos da criança se encantavam com tudo o que via. Um carrinho-andador (não destes proibidos), mas algo que estimula o bebê a, além de dar os primeiros passos, é da série crescer brincando, o que envolve coordenação motora grossa e fina, estimula habilidades cognitivas por meio da exploração e experimentação e, ainda, promove a integração visoespacial, mediante a manipulação de peças.
Cá entre nós, o menino vai demorar um tempo para sacar tudo o que a caixa traz escrito, mas que ele gostou muito, isto é fato imediato. A contar pelos gritos dados, pela curtição em empurrar, a seu bel-prazer, o presente ganho.
Coube à vovó Sueli, a vovoluca, carinhosamente tratada pela filha-mãe, a escolha de um presente para o neto, o primeiro, assim significativo, sem ostentação, como preferem os pais do menino. Pois bem, feitas as escolhas, o baby car homeplay começou a rodar pela casa a partir da abertura da grande caixa. O presente fez o efeito desejado: passear com o proprietário em seu primeiro carrão. Sem nenhuma instrução sobre a utilização do veículo pelo fabricante, na caixa, por exemplo, utilizando a tração humana, iniciou-se a saga do presente para carregar o menino e sua alegria por diferentes espaços.
Para esperar o Natal, o bebê partiu para um passeio com os avós. Foram para uma praça da cidade, onde se pratica esportes em aparelhos comunitários, e ainda se passeia com pequenos animais, se senta à praça para tomar uma água de coco, comer um milho verde.
A praça estava vazia. Talvez os preparativos para as distintas ceias natalinas afugentaram as pessoas de suas malhações. Era a hora de malhar o pernil, o peru, ou outras guloseimas. E fomos divertir o e com o menino.
A cada aparelho de ginástica que ele via era uma alegria. Uma alegria captada por uma câmera digital da vovó. E a hora foi passando e o menino a tudo curtia, alegremente e prestava atenção a cada detalhe, a seu modo de ver as coisas com as quais ele constroi seu universo infantil.
Enfim, a noite chegou e encontramo-nos em meio a abraços largos e sorrisos tantos e maiores que aqueles, na ceia de Natal, entre amigos, tios, primos, avós e bisavós por parte de pai do pequeno Theo, num ambiente acolhedor, digno da celebração do aniversário de Cristo. E foram tantas as alegrias que o menino a todas observava carinhosamente, encantado entre luzes e afetos emanados pelas pessoas que ali se irmanavam para a grande festa.
Uma noite memorável. Um Natal de amor, entre a gente do lugar, sua história linda, seu espírito aberto, sob a batuta do biso Benedito, a comandar a festança ao longo de seus oitenta e sete anos de alegria. Um discurso simples do ancião marcou-me a esperança do Natal. E ele, saído de uma breve internação hospitalar naquela tarde, mas com voz forte, olhar atento, disse com ternura: - quero saudar toda esta família, nesta noite cristã e desejo que no ano de 2014 nos encontremos novamente juntos, em paz, em harmonia, para a comemoração de mais um Natal, com o nosso tradicional amigo-secreto. À fala do simpático e alegre biso, seguiu-se o ritual cristão das orações e preces, seguidos do “Viva Jesus”, puxado com acorde vibrante da vó Marogênia do pequeno Theo.
Foi muito bom viver o primeiro Natal com o nosso neto. Com os nossos amigos. Foi ótimo partilhar alegria, carinho, amor e dividir o neto com os outros parentes do menino, no mesmo ambiente. Foi maravilhoso ouvir o depoimento de nossa filha de que o Natal surgia com outro sentido no que ainda restava do ano de 2013. É evidente que ela esteja, de fato, ciente de que a magia adicional chegou a sua vida. Natal é tempo de celebrar com a família. E, a chegada do bebê para os pais Liza e Paulinho, sinaliza isto, apesar de o garoto ainda pouco compreender estes significados.  Incluí-lo na festa, eis aí o grande ensinamento e isto ele aprenderá ano a ano.
Mais do que presentes, estar presente, talvez o grande aprendizado do primeiro Natal de Theo. E ele esteve lá: firme, forte, sorridente.
Fico com as palavras de Rainer Maria Rilke para as considerações finais sobre este Natal de dois meninos: o menino Theo e o menino-aniversariante: “Isso é Natal, sentir no peito uma vez por ano a expectativa, a esperança inabalável, de que o adulto, ora vigorando em nós, nos quer surpreender, não um pouco, não, muito, com o infinito.”

São José do Rio Preto, 25 de dezembro de 2013. Dez meses do menino Theo, com os parabéns do vovolisio.