Mudança é sempre bom, apesar de
trabalhosa. Ainda que o texto Mude, de autoria polêmica, recomende ou sugira algumas
ideias, vale retirar dele algumas leituras sobre o ato de mudar: mudar de rua,
a cadeira de lugar, tomar outros ônibus, corrigir postura, comer menos, arrumar
trabalho mais digno, mais prazeroso e tantas outras propostas.
Pois bem: mudei-me de casa
recentemente. Não sei se segui o poema, mas valeu a pena tê-lo feito. É sempre
bom decidir que a felicidade é a chave de entrada da porta da nova casa.
E digo felicidade de mão cheia:
um novo canto para cantar novas alegrias, ainda que, por ora, entre caixas e
pacotes, mas tudo tomará seu lugar, outras coisas serão mantidas, outras,
ainda, serão descartadas.
Foi o que aconteceu ontem ao
abrir uma caixa e rever coisas guardadas há algum tempo. As caixas, estas sabem
segredos silenciados no escuro e na fita gomada que as vedam. Sim, sabem sim.
É sobre este segredo que me
debruço ao falar de folhas rasgadas. Rasguei várias e diversas contas e faturas
pagas (que bom que hoje há declaração de quitação). De repente, em meio a
coisas de escola, deparei-me com duas folhas distintas, do mesmo ano de 2005,
apesar de serem contemporâneas, estavam armazenadas distante uma da outra.
De ímpeto, eliminei a primeira:
um telegrama de uma instituição de ensino na qual trabalhei, por meio do qual,
seu diretor me convidava a comparecer no local no dia seguinte para tratar de
rescisão contratual, já que o órgão não mais precisaria de meus préstimos profissionais.
Não sei por que guardei o papel, talvez porque a gente guarde coisas inúteis
como comprovação de tantas inutilidades da vida, uma demissão, por exemplo.
Não guardei o papel com raiva,
mas com raiva o rasguei por tê-lo guardado entre algumas preciosidades.
E aí entra o segundo texto, ora
conservado. Trata-se de um texto intitulado “Você é muito especial”, assinado
pela autora, uma ex-aluna da instituição que me dispensou naquele ano. Diferentemente
do telegrama, o relato tem sua poesia, sua beleza, sua arquitetura de verdade
sobre a pessoa que o produziu.
É um desenho que revela a vida da
pessoa, sua história, sua trajetória, suas dificuldades, a perda dos pais, do
irmão, enfim, uma história acidentada de alguem que começou a trabalhar aos
onze anos e só retornou ao meio acadêmico bastante tempo depois.
E a riqueza de detalhes do texto
me fez ver que este deveria ser mantido no lugar onde guardamos coisas das
quais não queremos nos separar. Pois bem, a ex-aluna relatava no texto da
alegria em ter ingressado no Curso de Pedagogia, em 2005. E como ela estava e
se sentia feliz por suas conquistas, em especial por ter chegado à Universidade
após uma vida escolar acidentada, e foi na suplência que ela encontrou degraus
para isso. O relato trazia um lamento da estudante sobre suas deficiências
acadêmicas, dado o terreno acidentado sobre o qual caminhou com dificuldades
entre a escola que acolhe e a que é acolhida quando se tem condições para o
estudo, mas as perdas não eram vistas como derrotas, pelo contrário, como
estímulo a perseguir novos objetivos. Vale recortar do texto o que dizia a
moça: (...) “ Enfim iniciam-se as aulas,
para mim um mundo novo. Quantos obstáculos encontrei; sentia-me tão diferente
de todos que ali estavam; pensei em desistir. Quantas vezes me questionei sobre
o que estaria fazendo aqui, pois não sei ler, nem sei escrever. O tempo passou
e tudo foi se encaixando: descobrir que tenho capacidade. Portanto, Professor
Elísio, conto com sua ajuda; sua garra me enconraja. Sou uma aluna invejosa
assumida. Quando algum aluno diz alguma frase que você gosta, em seguida você
responde, gente, que bonito, que bom comentário, um dia eu vou ouvir isto de
você. Por favor, professor, mantenha este carinho com a classe, hoje não
consigo mais me viver sem a faculdade e você faz parte dela. Se você deixar de
brilhar, deixarei de crescer”.

A vida é assim: um papel aqui,
outro acolá e o seu desenho inacabado se vai rasgando ou guardando. Escolhi
guardar o segundo dos textos aqui referido e o homenageio com Fernando Pessoa,
nos versos:
"Trago dentro do meu coração,
Como num cofre que se não pode fechar de cheio,
Todos os lugares onde estive,
Todos os portos a que cheguei,
Todas as paisagens que vi através de janelas ou vigias,
Ou de tombadilhos, sonhando,
E tudo isso, que é tanto, é pouco para o que eu quero.
Álvaro de Campos – Fernando Pessoa.
Como num cofre que se não pode fechar de cheio,
Todos os lugares onde estive,
Todos os portos a que cheguei,
Todas as paisagens que vi através de janelas ou vigias,
Ou de tombadilhos, sonhando,
E tudo isso, que é tanto, é pouco para o que eu quero.
Álvaro de Campos – Fernando Pessoa.