Muito se fala
sobre a maçã. O fruto pomáceo da macieira é um dos frutos de árvore bastante
cultivado e também muito apreciado, seja por sua beleza, seja pelas distintas
propriedades medicinais. O ditado popular “uma maçã por dia mantém o médico
longe” evidencia os benefícios da fruta ao organismo humano. .
Esta iguaria,
originária da Ásia Ocidental, está presente na mitologia e nas religiões de
diferentes culturas. A fruta, de acordo com o livro sagrado, é a representação
do fruto da árvore da ciência do bem e do mal (Gênesis, 2, 17), razão pela qual
o homem perdeu o paraíso ao preferir conhecer a origem das coisas.
A maçã, a rainha
das frutas, para os europeus, na mitologia, por exemplo, se associa ao amor, à
beleza, à fertilidade. A expressão pomo da discórdia também tem suas raízes
fincadas na magia da fruta.
O imaginário
infantil também se rendeu aos efeitos mágicos e trágicos da maçã que envenenaria
Branca de Neve pelas artimanhas da madrasta disfarçada em bruxa até que a sorte
e o amor quebrassem a maldade do sono enquanto o príncipe não entrasse em cena.
Até Steve Jobs,
da Macintosh, entrou na onda da fruta em suas possibilidades e conexões
múltiplas para difundir ideias e conceitos, plugar, ligar, clicar e vender,
vender muito.
E assim se tecem
fios e histórias, ao sabor das massas e maçãs como define o poeta Almir Sater,
e, assim, nesta composição de histórias, cada ser humano ser capaz de, ao
carregar o dom, poder ser feliz.
Tudo isso me
remete à construção cotidiana da vida. Ah, maçã, tão desejosa, tão especial,
tão curadora, tão eficaz e poderosa, você nem sempre esteve perto das mãos
humanas.
Ainda que fruto
do desejo, nem sempre foi fácil conquistar a fruta simbiose de amor e de
loucura por grande parte da população. Esta era tomada como algo a se comer
quando se estava doente. Sim: fica evidente mesmo que o “fruto proibido” é,
também, um santo remédio.
A história de
Ana Joaquina tem muito de maçãs. A garota viveu a época de magras maçãs e, como
muita gente do povoado, da região, do país, maçã era artigo de luxo. Como tal,
a menina via, na escola, à sombra do flamboyant, no recreio de sua escola, em
tempos risonhos e francos, as colegas, filhas da classe abastada, a desfilarem
anunciando ao mundo, que a maçã argentina, trazida como lanche, era símbolo que
dividia os que tinham daqueles que, quando muito, sonhavam com acesso aos bens.
E assim eram os recreios
escolares de Ana Joaquina entre suas colegas de tempo de escola a assistir
aquelas que exibiam as frutas vermelhas, trazidas de casa, para ter um momento
de felicidade expresso pelo carmim da maçã, sempre viçosa a distinguir ricos e
pobres.
Ana Joaquina
sonhava com as maças. No entanto, para a menina, cada dia, o pé da fruta
crescia mais e a distância entre o desejo e o bom e melhor fruto – o que fica
nos galhos mais altos – se fazia melhor.
Um dia a mãe de
Ana Joaquina, juntando alguns trocados, trouxe da feira do bairro mais próximo,
algumas maçãs. A alegria da menina estampava-lhe o rosto, anunciando a
esperança de comer uma das frutas e, além disso, levá-la como símbolo de um
recreio bem vivido na escola.
A mãe, precavida
que só, deu um aviso geral em casa: - aqui tudo é dividido entre os irmãos. E
os olhos da menina, apesar de concordar com a mãe, já viam a parte da felicidade
escapando, tornando-se metade, um quarto ou uma fatia.
Pois bem: se não
tem remédio, remediado está. Antes um pedaço do que nada, pensou Ana Joaquina.
Eu pego meu pedaço e o levo para o próximo recreio. Ah, isso farei com muito
orgulho e prazer, pensava a menina em construções de felicidade, em exercício
de conhecimento das massas e das maçãs.
Os irmãos da
garota, alheios a tudo isso, comiam alegremente seus pedaços de felicidade,
enquanto Ana Joaquina arquitetava o recreio do dia seguinte, o seu Dia D.
Cuidadosamente embrulhou sua metade de maçã (a mãe lhe deu uma metade de
alegria), que foi guardada para o recreio. Para a menina, a noite custaria a
passar e a chegada do outro dia, com a possibilidade de viver um intervalo escolar pleno de felicidade, era o
desenho da eternidade.
Enfim, o dia
chegou, a aula aconteceu e bateu o sinal do recreio. Lá na escola, perto de uma
avenida, à sombra do flamboyant florido, as meninas se foram chegando com suas
lancheiras e suas sacolinhas. Ana Joaquina quase chegou antes de todas, tamanha sua
ansiedade, para exibir sua metade preciosa.
O grupo formado,
as sacolas e as lancheiras abertas, Ana Joaquina custava crer que sua meia maça
fosse fazer a sensação do recreio. E, cheia de si e de alegria que a metade lhe
acrescia, perguntou às colegas:
- Adivinhem o
que eu trouxe de lanche hoje?
As exibidas não
deixaram de curtir aquela pergunta e se achegaram a mais nova rica do momento,
examinando cuidadosamente aquilo que se escondia sobre o guardanapo de Ana
Joaquina.
Apertaram daqui,
apertaram dali, apalparam e, por fim, peremptória, uma delas gritou:
- Eu sei,
Joaquina!
- É apenas um
pedaço de maçã.
Ana Joaquina não
soube esconder seu desconforto, sua tristeza, sua chateação. E, para ela, o
recreio, naquele dia, teve um gosto amargo, sem graça, sem nada. Apenas uma
maçã sem um pedaço e nada mais.
São
José do Rio Preto, 22 de fevereiro de 2013.
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