sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Uma maçã sem o pedaço


Muito se fala sobre a maçã. O fruto pomáceo da macieira é um dos frutos de árvore bastante cultivado e também muito apreciado, seja por sua beleza, seja pelas distintas propriedades medicinais. O ditado popular “uma maçã por dia mantém o médico longe” evidencia os benefícios da fruta ao organismo humano. .
Esta iguaria, originária da Ásia Ocidental, está presente na mitologia e nas religiões de diferentes culturas. A fruta, de acordo com o livro sagrado, é a representação do fruto da árvore da ciência do bem e do mal (Gênesis, 2, 17), razão pela qual o homem perdeu o paraíso ao preferir conhecer a origem das coisas.
A maçã, a rainha das frutas, para os europeus, na mitologia, por exemplo, se associa ao amor, à beleza, à fertilidade. A expressão pomo da discórdia também tem suas raízes fincadas na magia da fruta.
O imaginário infantil também se rendeu aos efeitos mágicos e trágicos da maçã que envenenaria Branca de Neve pelas artimanhas da madrasta disfarçada em bruxa até que a sorte e o amor quebrassem a maldade do sono enquanto o príncipe não entrasse em cena.
Até Steve Jobs, da Macintosh, entrou na onda da fruta em suas possibilidades e conexões múltiplas para difundir ideias e conceitos, plugar, ligar, clicar e vender, vender muito.
E assim se tecem fios e histórias, ao sabor das massas e maçãs como define o poeta Almir Sater, e, assim, nesta composição de histórias, cada ser humano ser capaz de, ao carregar o dom, poder ser feliz.
Tudo isso me remete à construção cotidiana da vida. Ah, maçã, tão desejosa, tão especial, tão curadora, tão eficaz e poderosa, você nem sempre esteve perto das mãos humanas.
Ainda que fruto do desejo, nem sempre foi fácil conquistar a fruta simbiose de amor e de loucura por grande parte da população. Esta era tomada como algo a se comer quando se estava doente. Sim: fica evidente mesmo que o “fruto proibido” é, também, um santo remédio.
A história de Ana Joaquina tem muito de maçãs. A garota viveu a época de magras maçãs e, como muita gente do povoado, da região, do país, maçã era artigo de luxo. Como tal, a menina via, na escola, à sombra do flamboyant, no recreio de sua escola, em tempos risonhos e francos, as colegas, filhas da classe abastada, a desfilarem anunciando ao mundo, que a maçã argentina, trazida como lanche, era símbolo que dividia os que tinham daqueles que, quando muito, sonhavam com acesso aos bens.
E assim eram os recreios escolares de Ana Joaquina entre suas colegas de tempo de escola a assistir aquelas que exibiam as frutas vermelhas, trazidas de casa, para ter um momento de felicidade expresso pelo carmim da maçã, sempre viçosa a distinguir ricos e pobres.
Ana Joaquina sonhava com as maças. No entanto, para a menina, cada dia, o pé da fruta crescia mais e a distância entre o desejo e o bom e melhor fruto – o que fica nos galhos mais altos – se fazia melhor.
Um dia a mãe de Ana Joaquina, juntando alguns trocados, trouxe da feira do bairro mais próximo, algumas maçãs. A alegria da menina estampava-lhe o rosto, anunciando a esperança de comer uma das frutas e, além disso, levá-la como símbolo de um recreio bem vivido na escola.
A mãe, precavida que só, deu um aviso geral em casa: - aqui tudo é dividido entre os irmãos. E os olhos da menina, apesar de concordar com a mãe, já viam a parte da felicidade escapando, tornando-se metade, um quarto ou uma fatia.
Pois bem: se não tem remédio, remediado está. Antes um pedaço do que nada, pensou Ana Joaquina. Eu pego meu pedaço e o levo para o próximo recreio. Ah, isso farei com muito orgulho e prazer, pensava a menina em construções de felicidade, em exercício de conhecimento das massas e das maçãs.
Os irmãos da garota, alheios a tudo isso, comiam alegremente seus pedaços de felicidade, enquanto Ana Joaquina arquitetava o recreio do dia seguinte, o seu Dia D. Cuidadosamente embrulhou sua metade de maçã (a mãe lhe deu uma metade de alegria), que foi guardada para o recreio. Para a menina, a noite custaria a passar e a chegada do outro dia, com a possibilidade de viver um intervalo escolar pleno de felicidade, era o desenho da eternidade.
Enfim, o dia chegou, a aula aconteceu e bateu o sinal do recreio. Lá na escola, perto de uma avenida, à sombra do flamboyant florido, as meninas se foram chegando com suas lancheiras e suas sacolinhas. Ana Joaquina quase chegou antes de todas, tamanha sua ansiedade, para exibir sua metade preciosa.
O grupo formado, as sacolas e as lancheiras abertas, Ana Joaquina custava crer que sua meia maça fosse fazer a sensação do recreio. E, cheia de si e de alegria que a metade lhe acrescia, perguntou às colegas:
- Adivinhem o que eu trouxe de lanche hoje?
As exibidas não deixaram de curtir aquela pergunta e se achegaram a mais nova rica do momento, examinando cuidadosamente aquilo que se escondia sobre o guardanapo de Ana Joaquina.
Apertaram daqui, apertaram dali, apalparam e, por fim, peremptória, uma delas gritou:
- Eu sei, Joaquina!
- É apenas um pedaço de maçã.
Ana Joaquina não soube esconder seu desconforto, sua tristeza, sua chateação. E, para ela, o recreio, naquele dia, teve um gosto amargo, sem graça, sem nada. Apenas uma maçã sem um pedaço e nada mais.


São José do Rio Preto, 22 de fevereiro de 2013.

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